18.1.06
Guerra do Fígado
O ganso vai morrer! Arregalam os olhos e gritam as mocinhas sensíveis. Mas nós também vamos... então melhor comê-lo. Muita gente acha que foie gras é um patê. E feito de porco ainda por cima. Neste caso dá pena do ganso mesmo, morrer com esse fígado glorioso por nada e ser chamado de porco. Agora os Estados Unidos proíbem a coisa, dizendo que é pouco higiênica... está declarada a guerra do fígado.
Rolou um stress, um dos prazeres mais unanimemente cultuados na boa mesa está sendo alvo de protestos e baixarias. Quem ousa falar em cozinhar ou comer estas duas inocentes palavrinhas francesas: foie gras, arrisca-se a ter seu nome empastelado, sua caixa de e-mails repleta de apopléticos vitupérios. Na Califórnia, no ano passado, um chef francês teve que se mudar de cidade, porque recebia ameaças pelo telefone e uma fita de vídeo pelo correio, mostrando o movimento de seus filhos, que iriam "ser seqüestrados e ter seus fígados inchados por superalimentação" se continuasse a produzir pratos com a iguaria. Curioso mundo este. Ninguém se preocupa muito em sair no seu carro individual, atravancando as ruas e poluindo a atmosfera, mas matar um ganso! Crime contra a humanidade...
E de onde vem o barulho? GLUPT conversou com produtores nacionais. Um deles, Marcondes Moser, tem estado nas barricadas em defesa do produto. No mercado há alguns anos, comercializando vários tipos de aves ("nosso carro chefe é o marreco, prato típico do estado de Santa Catarina, onde fica nossa empresa") ele tem sido o alvo mais freqüente dos eco-histéricos. Sua resposta é sempre educada e objetiva, em lugar de brigar ele argumenta, mesmo sendo bem claro que com estas pessoas não há muito que se racionalizar. Explica pacientemente: "o ganso não está doente, se estivesse não poderíamos consumi-lo. O fígado acumula gorduras num processo natural para atravessar as migrações e os rigores do inverno". Ou seja, todo ganso naturalmente faz uma auto-engorda (ao contrário dos humanos que pensam em dietas o tempo inteiro) para os meses de privações e necessidades energéticas maiores. Só que são abatidos nesse auge, antes de migrarem, e (nham) são comidos, o mais sublime dos alimentos. O que o criador faz é simular e estimular esse processo em cativeiro. O mais importante é notar que o aumento exagerado do fígado por acúmulo de gorduras só se dá alguns dias antes do abate e não, como sofrem em pesadelos as pessoas nervosas e hipersensíveis, durante toda a vida dos bichos. Mas militante muitas vezes não quer escutar, pois precisa acreditar. Se ficarem convencidos de que os gansos não sofrem mais do que uma alface para morrer, permitindo-se esse imenso prazer de comer seu foie, terão que buscar outra causa, a libertação dos chicletes, a humanização da fritura dos pobres pastéis, a crueldade do microondas, coisas do gênero. Mas isto está na esfera da psicopatologia, nós estamos na da gastronomia. Não querem comer foie gras? Melhor, sobra mais para nós. Não há hoje grande chef que não inclua um prato de foie gras no seu cardápio. Escolhemos um mais clássico, o proprietário do Le Violon d’Ingres, para dar duas receitas bem simples, em que os fígados são mais respeitados e não recebem excessos de adereços que mascarem sua única e irrepetível qualidade de delícia.
São receitas do Chef Christian Constant, ligeiramente adaptadas para os leitores brasileiros. Ressaltando que o melhor do produto é fazer de tudo para manter sua inigualável textura. O ganso já morreu, seu fígado é um dos grandes acontecimentos gastronômicos do planeta.