12.1.06

Um dia no campo



Oito da manhã no intenso frio do inverno da plácida e linda Montevidéu. Daniel Pisano me pega no hotel para visitarmos vinhedos. No carro o patriarca da família, César Pisano, diz que "saiu para dar uma voltinha". Paramos no campo, numa pequena elevação da qual se podem ver todas as áreas de plantação. Daniel vai animadamente explicando: aqui temos Pinot Noir, ali Tannat, ali Cabernet Sauvignon...O sol mal apareceu, a grama está úmida e gelada, as videiras dormem o seu sono de frio, mas a atividade do homem continua em torno delas e para seu benefício. Houve a poda, agora as ramas são dirigidas para busca de melhor insolação e arejamento, evitando pragas e podridão. No meio do campo está Eduardo Pisano, encarregado dos vinhedos. Ele supervisiona no momento esta "amarração" das ramas, usando vime, que depois será tragado pelo solo, sem contaminação. Todo o trabalho dos Pisano é orgânico, o fértil solo da região de Canelones e Progreso dispensa fertilizantes, os pesticidas são desnecessários pela própria manutenção de um balanço ecológico, em que insetos "bons" combatem os "indesejáveis". Os vinhos e os vinicultores agradecem. Cesar Pisano só reclama das lebres que comem suas rosas, ele gosta de plantar rosas no inicio de cada fileira de vinhas. Daniel dirige o carro com uma mão e gesticula com a outra, ensinando todo o processo, enquanto manobra para por e tirar seus dois pares de óculos que pendem do pescoço ("uma para ver mulheres feias e outro para as bonitas". Como se nota ele olha todas...). Não sossega enquanto não acha um local em que o solo se exiba por inteiro, com suas pequenas pedrinhas calcárias típicas da região. Nesta altura já estamos cobertos de barro até quase os joelhos. Só então me ocorre perguntar se tem cobras por ali. "Claro! Eu já fui picado quando cortava bambus para fazer estacas", diz impassível. Ele não quer me mostrar só os seus vinhos e como são feitos, quer que eu entenda o país, que coma a carne de Hereford, mais firme e mais saborosa que as nossas e a Argentina, quer que entenda como são tomadas as decisões dentro de uma empresa familiar, quer me explicar o terroir (expandindo o conceito e enfiando todo o Uruguai dentro dele). Parece incansável neste esforço, vamos ao Café Brasileiro, tradicional café de tertúlias, ao porto, ao cerro ver a cidade de cima, até mesmo ao estádio Centenário. É verdade que nada disto tem a ver com vinho diretamente, mas se o vinho é fruto do lugar, eis o lugar é o que me diz. Na sede da empresa, uma agradável casa cor de salmão com tijolos aparentes, no significativo lugarejo chamado "Progresso" visitamos a sala de barricas, mais algumas parcelas de uvas, onde está a famosa 1ª viña que dá nome ao seu mais conhecido vinho e nos encontramos com Gustavo, o enologo, que me mostra as primeiras Harriague (as mudas mais antigas de Tannat, trazidas pelos imigrantes) algumas quase centenárias. São mantidas ali mais por tradição pois significam a continuidade do trabalho. Provamos dos vinhos que terminam seu estagio em barrica, dois diferentes Pinot Noirs, alguns Tannat, um Merlot, Petit Verdot, Cabernet Franc. Apesar de vinhos muito jovens já mostram um caráter bastante forte neste inicio de vida e prometem, como prometem estes vinhos! No almoço de carnes grelhadas, na própria cantina, rodeados por fotos e lembranças da longa viagem destes Pisano e Arretxea da Itália e do Pais Basco até este pedacinho da America do Sul, que é uma metáfora também da mesma trilha da Harriague/Tannat que nasceu difícil no Madiran e encontrou seu desenvolvimento e lugar no Uruguai. Comemos alguns dos miúdos mais cobiçados do mundo, mollejas (timo de vitela, o ris de veau francês), chotos (intestino delgado de cordeiro) e chinchulines (intestino grosso) e uma degustação vertical informal de 1a Vina Tannat, vinho emblema do país, único rotulo uruguaio a aparecer no Atlas Mundial do Vinho de Hugh Johnson e Jancis Robinson. Mesmo não sendo pensado como um vinho de guarda, surpreende como continua vivo e fresco desde a safra mais antiga que têm estocada. Um espumante de Torrontés mata a sede e mostra a versatilidade pouco explorada desta uva. Quando já aparecia no céu uma lua imensa e a temperatura voltava a cair bastante apareceu o vinho do sobrinho, porque a novíssima geração (a quinta) de Pisanos, capitaneada por Gabriel Pisano (21 anos) inventou um vinho, e Daniel conta que a cada passo dizia: "tudo bem, vamos desperdiçar alguns litros de Tannat...mas deixa eles". E depois: "tudo bem, vamos gastar umas barricas de carvalho francês novas, mas deixa os meninos fazerem experiências". Dali saiu o Etxe Oneko, licor de Tannat, uma mistura implausível entre um Porto e um Amarone, denso, frutado, bastante ácido, muito sutil mas muito presente, capaz de enfrentar sem medo sobremesas adocicadas e um queijo azul. O tio Daniel acaba por admitir: "tenho muito orgulho de meu sobrinho, ele sabia o tempo todo o que estava fazendo". Mais um Pisano que sabe.